A fervura de 2020
2020 está sendo um ano peculiar, bastante desafiador, sofrido para muitas pessoas. E fica claro que todos estejam ansiosos para que ele acabe logo, levando consigo seu legado, se desfazendo junto às últimas badaladas do dia 31 de dezembro.
Mas, lamento informar, que 2020, assim como qualquer ano vivido por nós, se tornará nosso patrimônio indelével, uma vez que passará a constituir não apenas a nossa biografia e as nossas lembranças, mas a nós mesmos, pois somos feitos no passar do tempo. Somos feitos de células sim, mas também de minutos.
Na verdade, o tempo é o único bem que nos pertence de fato. Todo o resto nos é emprestado e o devolveremos ao deixar a vida física.
Diferentemente do dinheiro, outro bem necessário para viabilizar a experiência existencial neste orbe, o tempo, a despeito das melhores competências e intenções de uma pessoa, não pode ser ampliado. Pode ser encurtado, mas isso é outra história.
R$10 podem ser transformados em R$20, R$100 ou muito mais. Mas, com o tempo isso não é possível. Os cuidados com a alimentação e a saúde, de um modo geral, farão com que se aproxime ou até se cumpra, em raríssimas exceções, o máximo estabelecido, mas nunca além disso. Ampliá-lo, é tarefa para seres que habitam noutras esferas, situadas além da 4ª dimensão a que estamos todos submetidos, sob a égide dos ponteiros e folhinhas.
A interpretação e, portanto, a experiência subjetiva sobre o tempo, podem ser modificadas livremente, fazendo com que se tenha a impressão de que o tempo passou mais rápido ou que durou uma eternidade, de acordo com a palheta emocional do momento. Mas é somente este o nosso alcance por enquanto.
Desta forma, 2020 passará, mas não deixará jamais de existir, por tudo o que produziu em nós. Pelas experiências e impressões deixadas, mas, principalmente, pelo conjunto de modificações estruturais que catalisou na nossa forma de ver e de sentir a vida, de nos relacionarmos conosco e com os demais, sejam eles nossos semelhantes ou dessemelhantes.
2020 nos provocou, nos atiçou, nos levou ao limite de nós mesmos. Nos cortou em pedaços e nos juntou novamente, de uma forma completamente diversa, para que pudéssemos nos experimentar em nós mesmos. O bizarro é que a reunião destes pedaços não nos fez algo disforme, ao gosto de Mary Shelley. A surpresa boa que o balanço de final deste ano nos traz é que a criatura do Dr Victor Frankenstein era a nossa versão anterior. Antes éramos esquisitos e mal acabados, inconscientes de algumas camadas da existência, que passavam batidas na superficialidade da correria do dia a dia. Estávamos acostumados com isso, com o que chamávamos de realidade, sem perceber que não passava de um recorte tosco e limitado desta, um reflexo de nós mesmos e de nossas limitações.
Como nos jogos de tabuleiros, retroceder algumas casas, não significa perder o jogo. É ganhar experiência, renovar o fôlego, amadurecer. É talvez a oportunidade de se aproximar mais do que chamamos de humano, sem ainda sê-lo de verdade.
Sim, somos deuses, como no adágio bíblico, mas ainda somos muito pouco humanos.
E, como não é possível atingir a divindade ou o reino dos céus, sem antes passar pelo reino dos homens, que possamos viver e buscar o que há de mais humano em nós, para que 2020 seja o que veio para ser: um caldeirão que nos ferve a todos, amolecendo a carne, drenando impurezas, agregando sabor e saber.
Os incautos chamam isso de inferno. Por que não? Pode ser.
Mas, os que entenderam a mensagem, chamam apenas de etapa. Mais uma casinha do tabuleiro.
Feliz 2020!
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